Expatriação: quando mudar de país também muda quem você é
Por: Raíssa Müller, Head de Conteúdo na Learn to Fly
Aos 18 anos, saí do interior do Rio Grande do Sul para estudar em Yale, nos Estados Unidos. Como todo sonho ao se realizar, a primeira fase foi de puro deslumbramento: a lua de mel. Pousei em Nova Iorque, participei de uma recepção pomposa para os calouros da faculdade, me inscrevi numa aula com o professor que tinha um prêmio Nobel.
Mas logo veio o outro lado. Um dia, entrei no meu dormitório e estava sozinha. Silêncio. A pilha de deveres se acumulava sobre a mesa. Pela janela, via os estudantes conversando em grupinhos no gramado do campus. Percebi que, apesar de todos serem muito simpáticos comigo, eu precisava me esforçar mais que o normal pelas amizades. Afinal, não tinha nenhuma experiência em comum com aquelas pessoas. Percebi que, apesar de todos estudarem muito, eu precisava estudar ainda mais. Afinal, não tinha feito o mesmo ensino médio que os meus colegas e ainda estava aprendendo outra língua. Percebi que, apesar de todos sermos jovens vivendo a mesma experiência, ninguém parecia entender exatamente o que eu estava sentindo. Afinal, saudade é uma palavra que nem existe em inglês. Essa foi a fase do choque cultural.
Aos poucos, fui entendendo as aulas sem precisar usar os aplicativos de tradução. Fui aceitando que precisava de muita small talk antes de conseguir um abraço. E, acima de tudo, fui reconhecendo que eu também poderia ter um lugar ali - até pertencer ali.
Os códigos culturais eram diferentes. As métricas de sucesso, amizade e pertencimento precisavam ser reaprendidas. Esse foi um longo período de ajuste, que de certa forma persiste até hoje, dez anos depois. Hoje, moro em NY, me formei em Yale e me mudei diversas vezes. A cada nova mudança, esse ciclo de readaptação retorna. Mas, pouco a pouco, vai ficando menos doloroso.
Se já me sinto pertencente? Sim. Mas nunca plenamente. É verdade o que dizem: uma vez expatriada, perdemos a capacidade de sentir que temos um único verdadeiro lar. Amo ir ao Brasil, mas já não me sinto completamente em casa. E, quando volto aos Estados Unidos, sinto que deixo uma parte de mim no Brasil.
Ser expatriado é isso: ao mesmo tempo em que vivemos um sonho: estudar, trabalhar ou simplesmente recomeçar em outro país, também carregamos uma sensação profunda de deslocamento. É como se parte de nós permanecesse no lugar de origem, enquanto outra parte estivesse em constante construção, aprendendo a existir em um novo contexto.
A verdade é que os lugares continuam os mesmos, mas nós mudamos. Já não enxergamos mais a terra natal com os mesmos olhos, e nem os lugares que por tanto tempo idealizamos. O mundo vai se tornando menor, e nós, menos idealistas e mais adaptáveis. No fim, a grande recompensa não é desbravar o mundo, mas descobrir mais sobre nós mesmos.
Essa é uma jornada cheia de aventuras, dores e emoções. Se vale a pena? Muito. Mas é possível viver tudo isso sem sofrer tanto.
Abaixo, compartilho algumas coisas que aprendi nesses dez anos estudando psicologia e vivendo a expatriação na pele. Queria que alguém tivesse me contado tudo isso antes…
O impacto psicológico da expatriação
A expatriação é muitas vezes idealizada como sinônimo de sucesso ou coragem. Mas, do ponto de vista psicológico, ela é uma transição complexa. Mudar de país não significa apenas trocar de endereço: significa trocar de referências, de língua, de rede de apoio — em alguns casos, até de identidade.
A psicologia descreve o processo de adaptação cultural em fases:
Lua de mel: tudo é novidade e encantamento.
Choque cultural: o cansaço da adaptação aparece, e a saudade do familiar se intensifica.
Ajuste: começamos a criar novos hábitos, a entender os códigos culturais.
Integração: a sensação de pertencimento emerge, mesmo que nunca seja completa.
Essa montanha-russa emocional pode gerar sentimentos de solidão, ansiedade e até sintomas depressivos. Ao mesmo tempo, ela também é um terreno fértil para crescimento pessoal: ampliamos nosso repertório, desenvolvemos resiliência e aprendemos a lidar com o incômodo de não ter todas as respostas.
Pertencer aonde?
Uma das maiores perguntas que surgem na expatriação é: “onde eu pertenço?” O imigrante raramente sente 100% de pertencimento em um único lugar. Muitas vezes, é justamente no “entre-lugares” que vamos reconstruindo nossa identidade. Somos feitos das nossas origens, mas também das novas experiências que colecionamos.
Esse processo mexe com a autoestima e pode alimentar a famosa síndrome do impostor: falar em outro idioma, provar competência em um mercado desconhecido, lidar com expectativas familiares e sociais. Não é pouca coisa.
Cuidando da saúde mental durante a expatriação
Se mudar de país é um dos maiores desafios logísticos, também é um dos maiores desafios emocionais. Alguns caminhos podem ajudar:
Criar uma rede de apoio: buscar comunidades locais que se alinham com seus interesses: clube de corrida, coworking, igreja, grupos de brasileiros, etc.
Manter rituais: essas ações são como âncoras que te conectam à sua identidade: manter a rotina de exercícios que já tinha antes de se mudar, cozinhar receitas da sua cultura, ouvir músicas brasileiras, celebrar datas brasileiras, etc.
Buscar suporte psicológico: terapia, mentoria ou grupos de apoio fazem diferença para processar a transição. Mais do que apoio, a mentoria oferece referências e atalhos que tornam o processo menos solitário.
Praticar autocompaixão: aceitar que errar, não entender e se sentir perdido fazem parte do processo.
Por que a mentoria é importante na expatriação?
Modelo de referência: ter alguém que já passou pela mesma adaptação ajuda a antecipar desafios e aprender estratégias práticas (como lidar com burocracia, choque cultural ou solidão).
Validação emocional: o mentor oferece escuta, normaliza sentimentos de inadequação e ajuda a reduzir a sensação de “estar sozinho nessa”.
Tradução cultural: além do idioma, o mentor ajuda a decifrar os códigos invisíveis (como funciona o networking, como interpretar feedback, o que é considerado sucesso no novo contexto).
Aceleração de integração: com dicas e conexões, o mentor encurta o caminho de adaptação, abrindo portas para redes sociais e profissionais.
Desenvolvimento pessoal e profissional: a relação mentor-mentorado estimula reflexões sobre identidade, propósito e objetivos, que muitas vezes ficam em crise durante a transição.
A expatriação é uma experiência transformadora, mas repleta de desafios. Ter um mentor nesse processo acelera a adaptação, oferecendo referência prática de quem já viveu a transição, apoio emocional para reduzir a solidão, tradução dos códigos culturais e conexões que abrem portas. Na Learn to Fly, contamos com mentores que já trilharam carreiras internacionais e estruturamos programas de mentoria que ajudam profissionais a integrarem-se mais rápido e com segurança, promovendo desenvolvimento pessoal e profissional ao longo dessa jornada.
A expatriação como jornada de autoconhecimento
No fim, morar fora não é apenas uma mudança geográfica — é uma mudança existencial. É um convite para se redescobrir, para expandir horizontes e para aceitar que o “lar” talvez seja menos um lugar fixo e mais um espaço interno que carregamos conosco.
Expatriar-se é, acima de tudo, aprender a viver entre mundos. E descobrir que, apesar de tudo, é justamente nessa travessia que nos tornamos mais inteiro.